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sexta-feira, 30 de março de 2012

Cárcere





Cárcere

Dias passados a colecionar cercas, muros,
arames, cães de guarda, vigias, alarmes e patuás
“O inferno são os outros”,  diz a bandeira na entrada do forte
Enquanto isso, o inimigo cruel e sabotador 
sorri entre um gole de café e outro.
Assiste a tudo ileso, no camarote, do outro lado do espelho...



domingo, 25 de março de 2012

Vem por aqui



Vem por aqui

Vem por aqui, dizem-me alguns com olhos doces e seguros
de que seria bom que eu os ouvisse quando me dizem . . .
Vem por aqui!

Eu olho-os com olhos laços, há nos meus olhos ironias e cansaços,
e cruzo os braços e nunca vou por ali.

A minha glória é esta: criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém, que eu vivo com o mesmo sem vontade
com que rasguei  o ventre de minha mãe.
Não, não vou por aí . . . 
Só vou por onde me levam meus próprios passos,
se ao que busco saber nenhum de vós responde,
por que repetis, vem por aqui?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
redemoinhar aos ventos, como farrapos
arrastar os pés sanguentos a ir por aí.
Se vim ao mundo  , foi só para deflorar florestas virgens
e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!  
O mais que faço, não vale nada!

Como pois sereis vós que me dareis impulsos, ferramentas, coragem
para eu derrubar meus obstáculos!?
Corre nas vossas veias sangue velho,
e vós amais o que é  facil!
Eu amo o longe,  a miragem , os abismos,
as torrentes os desertos...

Ide! Tendes estradas, tendes jardins, tendes canteiros,
tendes patria, tendes teto e regras e tratados e filósofos  e sábios.
Eu tenho a minha loucura!
Levanto-a como um facho a arder na noite escura
e sinto  espuma sangue e cântico nos lábios.
Deus  e o diabo é que me guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe,
Mas eu que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre deus e o diabo.
Ah! Que ninguem me dê piedosas intenções,
ninguem me peça definições.  
Ninguem me diga . . . Vem por aqui.

Minha vida é um vendaval que se soltou,
é um átomo a mais que se animou . . .
Não sei para onde vou . . .
Não sei para onde vou,
Sei que não vou por .

José Régio
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O que se ouve além da porteira


O idiota dessa aldeia

Rechinam meus sapatos rua em fora
Tão leve estou que já nem sombra tenho
E há tantos anos de tão longe venho
Que nem me lembro de mais nada agora
Tinha um surrão todo de penas cheio
Um peso enorme para carregar
Porém as penas, quando o vento veio
Penas que eram, esvoaçaram no ar
Todo de Deus me iluminei então
Que os doutores sutis se escandalizem:
"Como é possível sem doutrinação?"
Mas entendem-me o céu e as criancinhas
E ao ver-me assim de um poste as andorinhas
"Olha, é o Idiota desta aldeia!" dizem
Soneto de Mario Quintana / música de Lui Coimbra e Admar Branco

quinta-feira, 22 de março de 2012

Invisíveis



Invisíveis

Há os que passam pela vida em segredo
Caminham entre folhas secas e gravetos,
Em passadas cirúrgicas a evitar ruídos
Receiam a própria voz
Quando necessário: sussurram
Quem dera fossem invisíveis...
Poupariam a si mesmo o esforço
De sequer ocuparem espaço
Olhos furtivos, receosos,
Mirando o chão, aguardam...
Parecem estar a espera do derradeiro fim
Quando livrariam da mordaça
A maldita alma que teima em gritar
Ou que a ternura de um abraço
Venha enfim lhes socorrer

(À senhorinha desconhecida sentada na ponta do banco, que me comoveu...) 

domingo, 18 de março de 2012

Miudezas



Miudezas

Hoje acordei para coisas miúdas...
Aquelas que de tão insignificantes, o olho faz que vê
e a mente deixa escapar entre uma piscada e outra.
Quero me demorar em texturas e cores, sons e odores
Quero desenhar com os olhos, refazer contornos...
Imaginar de onde vieram e
onde se esconderão quando eu deixar de pensá-las.
Acordei para coisas miúdas, desprovidas de sombra
Que reinam soberanas dentro de mim

quarta-feira, 14 de março de 2012

Abrindo a porteira


Borboletas

Borboletas me convidaram a elas.
O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens
e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta
Seria, com certeza, um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras
do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças
do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidades para a paz do
que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que
os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do
ponto de vista de uma borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul.

Manoel de Barros




Lancei-me ao desafio de iniciar esse blog em dia de “responsa”: 14 de março, dia da poesia. Não poderia começar de outra forma que não fosse com uma poesia de Manoel de Barros.


Meu encontro com Manoel de Barros se deu quase que ao mesmo tempo em que descobri a fotografia. Ambos entraram na minha vida da maneira em que as coisas que já nos pertencem, e que só não tivemos a chance de reconhecer ainda, chegam e se encaixam. Sem dramas, sem esforço... Como reconhecer um amigo que há muito não vemos apesar do rosto marcado pelo tempo.
Ambos causaram em mim reações similares: Manoel mudou meu jeito de ler poesia, minha relação com a língua portuguesa (já transformada com Guimarães Rosa e Mia Couto) e meu olhar para as “coisas miúdas” – a fotografia, da mesma forma,  mudou meu olhar para o mundo. Ambos me fizeram voar para além da porteira...

Tamanha foi a relação entre o que despertaram em mim que não me espantei quando tropecei no livro de Manoel,  “Ensaios Fotográficos”, do qual a poesia acima faz parte. A meu ver, mais do que livros técnicos, mais do que aulas teóricas, todo aquele que pretende um dia se tornar fotógrafo deveria beber nessa fonte.

Manoel de Barros cria imagens fotográficas com sua poesia. A fotografia busca a poesia no sentido inverso.

Henri Cartier-Bresson , excepcional fotógrafo do cotidiano, diz: “Fotografar é pôr a cabeça, o olho e o coração no mesmo ponto de mira”...

Não passa pelo mesmo caminho, a poesia?

Há muito que cultivo a idéia de reunir minhas experiências fotográficas e o universo que elas suscitam em mim, em um só lugar.
Não tenho a pretensão de me considerar uma fotógrafa. Não freqüentei escola, não tenho formação técnica, muito menos equipamento compatível pra merecer o título de profissional. Sou sim uma colecionadora de imagens.

A idéia desse blog é compartilhar essas imagens – meus vôos na tentativa de ver o mundo com “olhos de borboleta”.  Cada imagem funciona também como plataforma de lançamento para novos vôos – me remetem à histórias que vivi ou não, poesias e canções que me tocam a alma, ou pensamentos e questionamentos. Viagens...

Dia 14 de março, dia da poesia. Com a ajuda ilustre do mestre Manoel de Barros, solenemente declaro esse blog aberto a todos que quiserem participar dessa viagem.
Que possamos todos voar juntos muito além da porteira...